“Penso, logo existo.” Com essa frase, Descartes inaugurou uma visão da mente humana centrada na razão como evidência máxima da existência. Séculos depois, o neurocientista António Damásio desafiou esse raciocínio afirmando que, na verdade, “sinto, logo existo.” Para Damásio, as emoções e os estados corporais são a base da consciência e da tomada de decisões. Mas e se ambos estiverem esquecendo algo ainda mais profundo?
Neste artigo, proponho um olhar mais radical e filogeneticamente coerente: “Sobrevivo, logo existo.” Antes de pensar ou sentir, o ser vivo reage para preservar-se. Vou explorar essa tese à luz da teoria do cérebro triuno de Paul MacLean, da neurociência contemporânea e das filosofias do corpo, da emoção e da existência.
A teoria do cérebro triuno de Paul MacLean — útil ou ultrapassada?
Nos anos 1960, o neurocientista Paul MacLean propôs uma teoria que marcou época: o modelo do cérebro triuno. Segundo ele, o cérebro humano é composto por três camadas evolutivas:
1. Complexo-R (cérebro reptiliano): estrutura mais antiga, responsável por comportamentos instintivos, reações automáticas e funções de sobrevivência.
2. Sistema Límbico: responsável pelas emoções, vínculos afetivos e memória emocional.
3. Neocórtex: estrutura mais recente, ligada ao pensamento lógico, linguagem, planejamento e autoconsciência.
Essa teoria teve grande influência na psicologia, na medicina e até na educação. No entanto, atualmente é considerada uma simplificação exagerada da organização cerebral. As funções cerebrais são altamente interconectadas e integradas, e não evoluem em blocos tão claramente separados.
Ainda assim, como metáfora evolutiva e funcional, o modelo continua sendo útil para refletir sobre o que nos constitui como seres conscientes.
“Penso, logo existo” e “Sinto, logo existo”: Será que ambos erraram?
A frase de Descartes, “cogito, ergo sum”, nasceu de um contexto filosófico que buscava fundamentos inabaláveis para o conhecimento. O pensamento reflexivo, para ele, era a única certeza possível. Mas esse raciocínio ignora o corpo, os sentimentos e o contexto biológico da existência.
Damásio, em “O Erro de Descartes”, corrige esse reducionismo ao mostrar que a razão é construída sobre emoções e estados corporais. Nossas decisões, inclusive as mais “lógicas”, são sempre influenciadas por sensações internas.
Contudo, tanto Descartes quanto Damásio partem de uma estrutura já minimamente organizada, que já sobreviveu o suficiente para sentir ou pensar.
E se antes do pensamento e antes da emoção, houver apenas a reação bruta à ameaça, o instinto de continuar vivo?
Reajo, logo existo: O instinto como fundamento radical da existência
A pulsão que sustenta toda forma de vida não é pensar, nem sentir, mas permanecer vivo. Esse impulso precede qualquer elaboração mental ou afetiva. Antes de saber quem somos, já reagimos.
Na primeira infância, antes da formação de vínculos emocionais e da construção do self, o bebê já reage ao desconforto, à fome, à dor e ao frio. O choro reflexo, o reflexo de sucção, o agarrar automático — tudo são respostas de preservação da vida.
Do ponto de vista evolutivo, o cérebro reptiliano, que comanda essas funções básicas de sobrevivência, está presente há centenas de milhões de anos, muito antes de cérebros capazes de emoção ou pensamento simbólico surgirem.
É nesse sentido que podemos dizer:
“Sobrevivo, logo posso existir. Sinto, logo posso significar. Penso, logo posso narrar.”
O que isso muda na Psicologia e na prática clínica?
Essa reinterpretação da base da existência tem implicações diretas na forma como entendemos o sofrimento psíquico e o trabalho terapêutico.
Na clínica de trauma, por exemplo, é comum encontrarmos pacientes cuja cognição e emoção foram “desligadas” em contextos de perigo extremo. O que permanece é o corpo em hipervigilância, o instinto bruto de lutar, fugir ou congelar.
Nas crises de ansiedade intensa, o paciente frequentemente não consegue pensar com clareza nem nomear o que sente. O que o domina é o impulso automático de se proteger — como se estivesse diante de uma ameaça real e iminente, mesmo quando não há perigo objetivo.
Na Terapia Cognitivo-Comportamental, é essencial entender que o pensamento distorcido muitas vezes é uma tentativa tardia e malformada de dar sentido a reações mais primitivas que o paciente não compreende nem controla.
Por isso, trabalhar apenas com reestruturação cognitiva nem sempre basta. Precisamos ajudar o paciente a regular o corpo, reconhecer seus impulsos de sobrevivência e construir segurança básica — antes de acessar emoções profundas ou reformular pensamentos.
O self não nasce pensante: Ele emerge da sobrevivência
A construção do self — essa narrativa coerente de quem somos — é um processo que se apoia em múltiplas camadas cerebrais e experienciarais. Antes de qualquer identidade, existe a preservação da integridade física e biológica.
Só depois, com segurança mínima garantida, podemos desenvolver vínculos emocionais, formar memórias afetivas, estabelecer preferências e, por fim, pensar sobre tudo isso.
O self, portanto, é um processo emergente, que começa com o corpo, passa pelo sentimento e culmina na linguagem.
Da Neurociência à Filosofia: Reconstruindo a frase que nos define
Talvez seja hora de rever nossa máxima existencial. Descartes tentou definir o ser humano pelo pensamento. Damásio trouxe o corpo e a emoção para o centro da consciência. Mas ambos partiram de um ponto já estruturado demais.
A realidade é que:
• Antes de pensar, precisamos sentir.
• Antes de sentir, precisamos sobreviver.
E talvez a frase que melhor nos represente não seja nenhuma das anteriores, mas sim:
“Sobrevivo, logo existo. Sinto, logo significo. Penso, logo narro.”
Uma nova hierarquia da consciência
Repensar o que nos constitui não é apenas um exercício filosófico, mas um imperativo clínico. Quando compreendemos que o instinto de sobrevivência está na base de tudo — inclusive da emoção e do pensamento — somos capazes de olhar para o sofrimento humano com mais compaixão e profundidade.
Na psicoterapia, isso significa ouvir o corpo antes da fala, validar as reações antes das interpretações e acolher a urgência de viver antes de querer entender a vida.
Perguntas Frequentes sobre Sobrevivo, logo existo
1. O que é o cérebro triuno de Paul MacLean?
O cérebro triuno é uma teoria desenvolvida por Paul MacLean que propõe que o cérebro humano é composto por três estruturas evolutivas: o complexo-R (ou cérebro reptiliano), responsável pelos instintos e comportamentos de sobrevivência; o sistema límbico, responsável pelas emoções; e o neocórtex, responsável pela razão, linguagem e pensamento abstrato. Embora seja uma simplificação, essa teoria ainda é útil como modelo metafórico para compreender o desenvolvimento da consciência.
2. O que significa “Sobrevivo, logo existo” na neurociência?
“Sobrevivo, logo existo” é uma reformulação filosófica baseada em evidências neurobiológicas, que destaca o instinto de sobrevivência como a base da existência consciente. Antes de sentir ou pensar, o ser humano precisa preservar a própria vida. Esse impulso vital é regulado por áreas cerebrais mais primitivas, como o tronco encefálico e o complexo reptiliano, que comandam reações automáticas de defesa, respiração, ritmo cardíaco e vigilância.
3. Qual a diferença entre pensamento, emoção e instinto no cérebro humano?
O instinto é a resposta mais primitiva, automática e ligada à sobrevivência (cérebro reptiliano). A emoção surge como uma camada intermediária, permitindo reações mais adaptativas e vínculos afetivos (sistema límbico). O pensamento é a etapa mais complexa, relacionada à autorreflexão, planejamento e linguagem simbólica (neocórtex). Cada um desses níveis opera em integração, mas tem raízes evolutivas distintas.
4. O que é o erro de Descartes segundo António Damásio?
No livro “O Erro de Descartes”, António Damásio argumenta que Descartes cometeu um equívoco ao separar mente e corpo, colocando o pensamento como essência da existência. Damásio mostra, com base em estudos neurológicos, que a emoção e os estados corporais são fundamentais para a tomada de decisões e a construção da consciência. Ou seja, sentimos antes de pensar — e o corpo é parte essencial da mente.
5. Como essa visão impacta a psicologia e a prática clínica?
Essa perspectiva reforça a importância de considerar o corpo, os instintos e as reações fisiológicas na compreensão do sofrimento psíquico. Na psicoterapia, especialmente em abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental, isso significa que o trabalho clínico não deve começar apenas pela análise dos pensamentos, mas também pela regulação emocional, segurança corporal e validação de reações automáticas, especialmente em quadros de trauma, ansiedade e pânico.
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DR. OSVALDO MARCHESI JUNIOR
Psicólogo em São Paulo - CRP - 06/186.890
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