A prática clínica psicoterapêutica, especialmente quando envolve pacientes expostos a traumas e violência doméstica, demanda uma compreensão profunda e multifacetada. Psicólogos que atendem indivíduos com essas vivências precisam, além de uma base sólida em teorias e técnicas, estar atentos às especificidades que cada caso traz.
A construção de uma aliança terapêutica positiva
A primeira etapa em qualquer processo terapêutico é a criação de um vínculo de confiança, que permita ao paciente se sentir seguro e compreendido. Estabelecer uma aliança terapêutica positiva é fundamental para que a psicoterapia seja eficaz. A validação emocional e a ausência de julgamento moral são cruciais para a construção dessa confiança. É importante, por exemplo, que o terapeuta não imponha metas irreais, como o desejo de esquecer um trauma, que, como sabemos, é impossível, dado o funcionamento da memória humana.
Além disso, o psicólogo deve compartilhar de forma clara o processo terapêutico, explicando as etapas e ações a serem tomadas, sempre com o objetivo de motivar o paciente a se engajar ativamente na mudança. Essa abordagem deve ser baseada em práticas comprovadas pela ciência e adaptadas às especificidades de cada caso, principalmente quando se trata de pessoas vítimas de violência.
O impacto da violência no atendimento psicoterapêutico
Existem diversos desafios a serem enfrentados ao atender pacientes vítimas de violência, como a presença de comorbidades (como depressão e abuso de substâncias), ideação suicida e risco de revitimização. A violência não só afeta a saúde mental, mas também pode prejudicar gravemente o desenvolvimento psicológico da pessoa. A exposição à violência doméstica pode gerar danos duradouros ao senso de identidade e autoestima do indivíduo, dificultando a construção de uma relação saudável consigo mesmo e com o mundo.
Em casos de violência, é fundamental que o terapeuta tome medidas protetivas, conforme previsto em lei. A simples manutenção do sigilo em uma situação de violência pode gerar danos secundários, como a amplificação da sensação de desamparo e o reforço de sentimentos de culpa. Para prevenir o agravamento da situação, é necessário que o psicólogo faça a notificação da violência, especialmente em casos de risco iminente de vida. Além disso, é crucial a articulação com a rede de apoio, como a escola, o conselho tutelar, e as delegacias especializadas, que devem ser mobilizadas de forma estratégica.
A violência doméstica e o ciclo de abuso
A violência doméstica e familiar tem uma dinâmica complexa, envolvendo segredos mantidos por ameaças ou barganhas, o que dificulta a saída da vítima. Muitas vezes, a vítima da violência acaba internalizando a culpa e, em muitos casos, sofre uma revitimização ao se sentir responsável por romper com a situação. Essa dinâmica de culpa internalizada pode ser agravada ao ser questionada sobre o motivo de não ter denunciado o abuso, uma atitude que, ao invés de ajudar, pode aprofundar o sofrimento.
Em muitos casos, o ato de “romper” com o agressor é mais difícil do que parece. Além disso, quando a violência é sistemática e constante, não deve ser tratada como um simples conflito – mas como um caso grave de abuso. Em qualquer situação, é importante que o terapeuta esclareça que o conflito é uma discordância de ideias, enquanto a violência é caracterizada pela desqualificação sistemática e repetitiva do indivíduo, como mulher, mãe ou profissional. Isso é uma violação do direito de viver com dignidade e respeito.
Estudos demonstram que, quando as vítimas vivenciam maus-tratos na infância, isso aumenta as chances de reproduzir padrões violentos na vida adulta, seja em relações de abuso físico, psicológico ou sexual. Isso ocorre porque a violência pode se tornar um comportamento aprendido, muitas vezes difícil de reconhecer e quebrar sem apoio profissional. Por isso, a abordagem terapêutica de mulheres que sofreram violência por parceiros íntimos exige um cuidado especial, que leve em consideração os traumas passados e suas repercussões no presente.
Estratégias terapêuticas para mulheres em situação de violência doméstica
Nos casos de mulheres com histórico de violência por parceiros íntimos, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) se mostrou eficaz, principalmente quando associada a técnicas de regulação emocional. A terapia de exposição gradual a memórias traumáticas, tão comum no tratamento do TEPT, pode não ser tão eficaz no caso de traumas complexos e múltiplos episódios de violência. Nesses casos, a regulação emocional se torna um pilar central para que a paciente possa começar a se proteger e reconstruir a autoestima.
O protocolo cognitivo-comportamental para mulheres vítimas de violência por parceiro íntimo é estruturado em 16 sessões organizadas em quatro etapas:
1. Psicoeducação sobre violência por parceiro íntimo e reestruturação das crenças de gênero: Fase em que a paciente toma conhecimento dos tipos de violência, o risco atual e, se necessário, um plano de segurança.
2. Técnicas de regulação emocional e reestruturação de memórias traumáticas: São trabalhadas estratégias para lidar com emoções e desconstruir crenças disfuncionais, como as relacionadas ao próprio valor, a culpa e o medo. A regulação emocional, fundamental para o manejo da ansiedade, raiva e tristeza, é aplicada ao longo de várias sessões, com práticas de relaxamento e enfrentamento.
3. Resolução de problemas: Desenvolvem-se habilidades de enfrentamento para lidar com as dificuldades cotidianas e urgentes da vida da paciente. O terapeuta ensina a paciente a identificar problemas, avaliar soluções e tomar decisões informadas para melhorar a situação.
4. Fortalecimento de estratégias de autoproteção e construção do futuro: Fase final que foca no fortalecimento da rede de apoio e na criação de um projeto de vida seguro e empoderado. A paciente trabalha no desenvolvimento de sua independência emocional e de estratégias que a protejam de futuros episódios de violência.
Essas etapas visam reconstruir a autoestima, melhorar a regulação emocional e ajudar a paciente a se proteger em futuras relações. O sucesso desse processo é medido pela diminuição dos sintomas de ansiedade, depressão, e TEPT, além do aumento da satisfação com a vida e da autoestima.
O papel do psicólogo: Notificação e envolvimento com a rede de apoio
Para que o processo terapêutico seja eficaz, é crucial que o psicólogo compreenda o funcionamento da rede de apoio (como escolas, conselhos tutelares, delegacias especializadas) e as legislações de proteção vigentes. Além disso, deve estar atento a situações de risco, como o suicídio, que exigem ações imediatas, como o encaminhamento para hospitais especializados.
A violência doméstica não é apenas um problema individual, mas um problema social que exige articulação com a rede de apoio. O psicólogo deve conhecer as formas de notificação previstas em lei, que incluem não só o Conselho Tutelar em casos de crianças e adolescentes, mas também, em situações de risco iminente de vida para mulheres, a quebra do sigilo para realizar uma denúncia externa. A notificação não se restringe apenas à pessoa que denuncia, podendo ser feita sem a revelação de sua identidade, o que pode oferecer mais segurança à vítima.
O atendimento psicoterapêutico a vítimas de violência doméstica e outros traumas exige sensibilidade, conhecimento das leis e da dinâmica da violência, além de uma postura ética que respeite os direitos da vítima e promova sua recuperação. A aliança terapêutica e o uso de técnicas baseadas em evidências, como a TCC, são fundamentais para o sucesso do tratamento.
A abordagem integrativa, que une psicoterapia e redes de apoio, é essencial para a recuperação dos indivíduos afetados pela violência, ajudando-os a reconstruir suas vidas e recuperar seu bem-estar psicológico. Para isso, é necessário que o psicólogo, com empatia e uma base sólida de conhecimentos, atue como um facilitador da recuperação, respeitando o tempo e as necessidades de cada paciente, sempre com o objetivo de promover a autonomia, a autoestima e a segurança emocional da pessoa atendida.
DR. OSVALDO MARCHESI JUNIOR
Psicólogo em São Paulo - CRP - 06/186.890
Atendimentos Psicológicos On-line e Presenciais para pacientes no Brasil e no exterior.
Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e Hipnoterapia.
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